Introdução
Se houver uma lista dos assuntos mais controversos quando se trata de defesa pessoal, a defesa contra facas certamente a estará encabeçando. Por um lado, há um sem-número de técnicas, decorrentes das mais diversas artes marciais. De outro, uma legião de entusiastas demonstrando a ineficiência dos primeiros. Há por vezes certa amistosidade em desmascarar falhas conceituais, mas quase sempre as críticas vêm seguidas de deboche e de certo ar de “revelação da charlatanisse alheia”. Mas quais os fatores realmente críticos dos ataques com facas que dificultam as defesas?
Primeiro, temos que ver como as facas se comportam na realidade. O teste da realidade é – ou deveria ser – fator determinante para qualquer técnicas ou tática que se proponha a salvar vidas. Enquanto instrutores especialistas nas mais diversas áreas multiplicam-se pela internet, há quem busque confrontar suas habilidades com a fria pedra da realidade.
E há bons exemplos. A história da família Gracie e a própria criação do Ultimate Fighting Championship remontam uma tentativa ilustre de confrontar as artes marciais à realidade de uma briga. Outros exemplos mais recentes são os trabalhos de Luiz Charneski na área de retenção e contra-retenção de armas de fogo, do policial americano Craig Hanaumi e do canal de YouTube Gracie Breakdown. Há muitos outros, claro.
O teste da realidade
Quando se trata do combate desarmado contra facas, há também inúmeros exemplos que, ao simularem situações minimamente próximas à realidade, ilustram diversas falhas nas técnicas de defesa. Apenas como exemplo, há vídeos onde o atacante diz onde e como irá atacar com a faca e, ainda assim, o defensor tem extrema dificuldade em se defender.
Mas este tipo de teste não é o melhor, e sequer o primeiro, para aferir a realidade das defesas contra lâminas. Uma rápida busca nas redes sociais mostra muitos bons exemplos. Mas listá-los tão somente ilustraria as falhas em muitos sistemas de defesa, quando mais salutar seria buscar algo mais estruturado e talvez construtivo, certo?
Para tanto, vou recorrer a duas fontes.
A primeira são as análises realizadas por Don Pentecost no clássico Put ‘Em Down, Take ‘Em Out! Knife Fighting Techniques from Folsom Prison. Escrito em 1988, o livro reúne lições aprendidas pelo autor enquanto esteve na prisão estadual Folsom, na Califórnia. Sim, a mesma imortalizada na canção de Johnny Cash.
A segunda é uma análise de cerca de 150 vídeos de ataques com facas realizada pelo instrutor de Krav Maga Patrice Bonnafoux. Sob o título de Self-defence against knife attacks: evidence-based approach, Bonnafoux faz análises estatísticas esclarecedoras.
Vejamos então quais as principais características de um ataque com facas que fazem com que muitos sistemas de defesa sejam, na prática, pouco eficazes ou até inúteis.
1. Ataques com facas são conduzidos pela mão que está vazia
Pode parecer pouco óbvio, mas faz sentido. A mão que está com a faca só costuma atacar depois que a mão livre conduz a situação: seja segurando, batendo, reduzindo as defesas, etc. De tão importante, esta é a primeira característica apontada por Pentecost e Bonnafoux.
Este último nos diz que cerca de 71,1% dos ataques são conduzidos pela mão livre. E qual a importância disso? Esta constatação leva por terra qualquer defesa que se baseie no ataque rápido e fortuito à mão com a faca, com o intuito de desarmar o agressor. Lógico. Se a faca está guarnecida, é muitíssimo improvável que se consiga acertá-la sem grandes chances de defesa.
Note como diversos métodos supõem que o atacante virá com a mão armada à frente, na base avançada. Se isso não for verdade, fica bem mais difícil desferir ataques à faca.
Além disso, a mão com a faca nunca pára aguardando um contra-ataque ou esperando para ser agarrada. Isso mesmo. A mão que ataca com a faca costuma desferir golpes repetitivos, sempre indo e voltando, ficando novamente guarnecida após cada golpe.
2. Ataques com facas raramente são duelos ou lutas justas
Quem ataca com facas não quer uma luta justa e igualitária. Não quer um duelo. Quer vencer e sair o mais rápido possível. E porque isto importa? Qualquer treinamento que tenha como foco – note a ênfase no “enfoque” – o combate com facas está fadado a ter pouca serventia prática.
Sim. Segundo Bonnafoux, em 80% dos casos analisados a faca ficou escondida até o último momento. Então analise se seus treinamentos consideram isso, ou se te preparam apenas para combates em que se vê claramente a faca e, possivelmente, lhe permitem sacar a sua faca para um confronto mortal. Na prática, não parece ser assim que as coisas funcionam.
Já Pentecost nos adverte que normalmente seu oponente estará mais – ou menos – bem armado que você, e apenas um iniciará os ataques, levando grande vantagem.
3. Os ataques com facas iniciam-se a curta distância
Bonnafoux contabilizou que cerca de 70,6% dos ataques com facas têm início a menos de um metro de distância. Um metro! Isso é nada mais que a distância de um braço estendido. Ou seja, além de repentino, o ataque normalmente já se inicia no raio de alcance do agressor. Neste cenário, as chances de defesa parecem bastante reduzidas.
Lembrando que o atacante costuma ocultar a lâmina até iniciar o ataque, resta então pouca chance de defesa se o ataque já se inicia a uma distância aproximada. Lembre-se: não se quer aqui dizer que qualquer treinamento contra facas é dispensável. Muito pelo contrário. Quer-se apenas alertar para a otimização do que se treina. Responda com franqueza: você está preparado para enfrentar um ataque surpresa à curta distância? É assim que você costuma treinar?
4. Atacantes com facas desferem movimentos curtos, rápidos e vigorosos
Ao contrário do que vemos em filmes e em muitos vídeos instrucionais, os agressores não se utilizam de movimentos amplos, plásticos, cadenciados e despretensiosos. Muito pelo contrário. Os movimentos são curtos, rápidos, repetitivos e determinados.
A ausência de movimentos amplos e plásticos já inviabiliza ou dificulta inúmeros métodos de defesa contra facas. Qualquer tentativa de bloquear os ataques fica bastante prejudicada e difícil. Sendo repetitivos, tornam-se perigosos: embora muitos sobrevivam a inúmeros ataques, basta um único golpe certeiro para um potencial desfecho fatal.
Pior: os ataques utilizam-se de diferentes ângulos e por vezes utilizam pegada não-convencional. Conforme Bonnafoux, em 58.8% dos casos os agressores utilizaram pegada regular, enquanto usaram pegada invertida (estilo picador de gelo) em 29.9%. Isso talvez surpreenda a muitos e desfaça a crença de que a pegada invertida seja característica exclusiva de pessoas tecnicamente habilidosas e experientes com lâminas. Talvez não seja bem assim.
5. Ataques com facas não demoram muito
Agressores com facas são determinados e querem acabar rapidamente o que começaram. Cerca de 1 em cada 4 eventos deste tipo acabam em cerca de 7 segundos. Em média demoram 23 segundos, sendo que 80% deles acabam antes dos 32 segundos, segundo Bonnafoux. Isso é metade de um minuto.
Ou seja, os agressores a faca são rápidos e bastante determinados. Pentecoste nos diz que “o objetivo em uma briga de facas será sempre matar o inimigo o mais rápido possível, com o menor risco possível”. Diz ainda que “a vontade de vencer é mais importante que a habilidade de vencer”. Isso talvez ilustre o fato de que um agressor a faca costuma ser determinado e rápido.
Considerações finais
Tem se tornado senso comum que a melhor defesa contra um ataque a lâminas é correr. E talvez seja uma saída útil, dependendo do caso. Mas esta não pode ser a única resposta. Não ao menos até que haja uma compreensão mais clara dos diversos casos em que pode haver um ataque a faca.
Primeiro que nem sempre é possível correr. Sim. Há muitos casos em que correr não é uma opção, seja pelas restrições do local, seja pela brutalidade e determinação do agressor. Segundo, nem sempre correr é a saída mais adequada. Muitas vezes podemos estar na iminência de defendermos alguém que amamos ou até estarmos no exercício de uma profissão de risco.
Sim, policiais muitas vezes precisam encarar a realidade de um ataque a faca, e precisam fazê-lo de forma eficaz e profissional, no seu nobre mister de salvar vidas. É claro que, ao menos nestes casos, não será comum um ataque contra mãos desarmadas. Ainda assim, há muito o que considerar. Como ilustrei no artigo A Regra dos 21 Pés, mesmo portando uma arma de fogo há que se considerar o potencial letal de um agressor portando lâminas.
Algumas fontes:
- Self-defence against knife attacks: evidence-based approach, por Patrice Bonnafoux: https://www.urbanfitandfearless.com/2016/09/self-defence-against-knife-attacks.html
- Gracie Breakdown: https://www.youtube.com/user/GracieBreakdown