1 – INTRODUÇÃO
Na primeira parte do nosso estudo, abordei as diferenças entre os conceitos de alta energia e alta velocidade, demonstrando que dois calibres podem ter a mesma energia e características completamente diferentes. Você viu que a energia é uma grandeza escalar e a velocidade uma grandeza vetorial e percebeu como isso se relaciona ao comportamento do projétil. Na segunda parte abordei os aspectos relacionados à balística externa dos ditos “calibres de alta energia”, comparando, novamente, os dois universos compreendidos na mesma faixa de energia: os calibres cujos projéteis possuem velocidade maior e massa menor e os calibres cujos projéteis possuem velocidade menor e massa maior. Vimos que os formatos dos dois tipos de projéteis são bastante diferentes.
Nesta terceira parte trabalharemos os aspectos relacionados à balística terminal desses calibres, especialmente na dinâmica da produção da lesão decorrentes desses dois tipos de calibres ditos “de alta energia”.
2 – MECANISMO DE PRODUÇÃO DE FERIMENTOS DE TIRO
Diferentemente de outros instrumentos, que resultam no deslocamento mínimo ou quase nulo dos tecidos adjacentes à região atingida pelo instrumento, o projétil propelido por arma de fogo (PAF) produz, além da lesão propriamente dita, uma onda de choque ao empurrar os tecidos, por meio de uma ação contínua de compressão e esmagamento, que se desloca radialmente à medida que o projétil avança pelo tecido. Com isso, mesmo tecidos não diretamente atingidos pelo projétil acabam por perceber a ação do instrumento, não necessariamente resultando em lesões.
Por serem dotados de massa e velocidade, os projéteis possuem, portanto, energia cinética, que é uma das formas de energia mecânica. Ao se chocar contra o alvo, parte ou toda a energia cinética contida no projétil se dissipa em outras formas de energia, como por exemplo energia térmica (calor), energia sonora (som), deformação dos tecidos (que também pode ser entendida como energia mecânica, desta vez energia potencial elástica, em função da elasticidade dos tecidos), sendo esta última a principal causadora da lesão propriamente dita. A elasticidade dos tecidos que compõem o corpo varia de acordo com a região e estruturas atingidas. Um tecido muscular esquelético possui fibras mais resistentes e com maior elasticidade que um órgão com maior quantidade de água, como o baço, por exemplo. Órgãos ocos como o pulmão ou a bexiga, apresentam comportamentos diferentes de órgãos sólidos, como o fígado, baço e rins. Os ossos possuem maior resistência mecânica e menor elasticidade, quebrando-se ao invés de expandir. Todos esses fatores aumentam consideravelmente a compreensão de como é produzida a lesão por tiro.
Além das variações inerentes às diferentes estruturas que compõem o corpo humano, outras variáveis externas devem ser consideradas, tais como a velocidade, formato, dimensões e massa do projétil que atinge o corpo. Considerando a mesma região atingida, projéteis com características diferentes produzem lesões diferentes. Projéteis com as mesmas características atingindo diferentes regiões produzem lesões diferentes.
Para melhor compreensão de como se dá a lesão resultante da ação de um PAF, pode-se dividir esta ação em dois momentos, sendo um deles o instante imediato da ação do projétil, enquanto a energia ainda está se dissipando nos tecidos, denominado CAVIDADE TEMPORÁRIA, e o outro aquele encontrado após a estabilização dos tecidos em sua acomodação pós-perturbação implementada pelo projétil, denominado CAVIDADE PERMANENTE. Tais momentos serão analisados a seguir.
2.1 – O estudo da cavidade temporária
Conforme explicado anteriormente, a energia do projétil se dissipa no corpo de diversas formas, sendo uma delas a deformação dos tecidos. As fibras dos tecidos possuem certa elasticidade, variável de acordo com a estrutura atingida, de maneira que a compressão produzida pela passagem do projétil se acumula na forma de energia potencial elástica nessas fibras, sendo então devolvida depois de cessada a expansão produzida pelo projétil, ocorrendo a reacomodação dos tecidos. Todo esse movimento de expansão e reacomodação de tecidos é denominado CAVIDADE TEMPORÁRIA, pois ocorre em fração de segundo, com duração e raio de expansão dependente de diversos fatores, dentre eles a região atingida, o formato e velocidade do projétil.
Para se ter uma ideia de como é a cavidade temporária produzida pela passagem de um projétil, basta efetuar um tiro em um material que permita a expansão da onda de choque, mas que não possua elasticidade para a reacomodação do material no trajeto de passagem do projétil. Vários materiais podem ser empregados neste teste, tais como argila, plastilina (massa de modelar) ou sabão em barra. Veja na Figura 1 a cavidade temporária de um projétil produzida em um bloco de argila.
2.2 – O estudo da cavidade permanente
Uma vez cessada a cavidade temporária, pela reacomodação dos tecidos, percebe-se o dano final resultante da ação do projétil, sendo este dano a lesão final propriamente dita, denominado cavidade permanente, que será sempre menor que a cavidade temporária. Assim como no caso da cavidade temporária, as dimensões e caraterísticas cavidade permanente dependerão de diversos fatores (região atingida, velocidade, e dimensões do projétil, etc).
A Figura 2 mostra um desenho esquemático explicando a formação das duas cavidades:
3 – FERIMENTOS DE TIRO PRODUZIDOS POR PROJÉTEIS DE BAIXA VELOCIDADE
Com base no exposto até agora, é possível entender como se dá a dinâmica de produção de lesão dos projéteis de baixa velocidade, principalmente se observarmos o que a literatura informa sobre o tema:
“Se a cavidade temporária for produzida rápida o bastante para ultrapassar a capacidade elástica do tecido, será capaz de produzir lesões em decorrência do estiramento provocado. Este efeito é percebido em projéteis de calibres de alta energia, como os de fuzis, mas não pelos calibres mais comuns de armas curtas. Para que a cavidade temporária de um projétil seja capaz de produzir um efeito lesivo, a velocidade do projétil precisa exceder os 2.000 pés por segundo (610 m/s).
Em velocidades menores, desenvolvidas por armas curtas, a cavidade temporária não possui velocidade suficiente para produzir nenhum efeito lesivo, portanto qualquer diferença de cavidade temporária produzida por calibres de armas curtas é irrelevante.” (DIMAIO, 2016)
Como brilhantemente explicado por DiMaio, a produção ou não de lesão decorrente da cavidade temporária dependerá da VELOCIDADE do projétil e não da sua ENERGIA. Curiosamente, no início do texto ele mesmo usa o termo “alta energia”, entretanto se refere à velocidade do projétil e não energia. Talvez isso de deva ao costume de se empregar essa terminologia mais popular, apesar de não adequada. Como mencionado por DiMaio, velocidades inferiores a 2000 fps são geralmente insuficientes para resultar em lesão, de forma que a cavidade permanente será resultante apenas da ação direta do projétil. Os danos decorrentes apenas da ação mecânica do projétil são denominados, pelo mestre Doc Maniglia, “danos primários”,
Para melhor ilustrar o tema, imagine uma corda submetida a uma tração gradual. Ela vai se esticando vagarosamente até suportar uma determinada carga. Agora imagine que uma carga um pouco menor que a corda suportou fosse bruscamente aplicada. Neste caso, apesar de ser uma carga menor do que a suportada pela corda, a velocidade com que a tração foi exercida foi grande o suficiente para ultrapassar a capacidade elástica da corda, resultando na sua ruptura.
No caso dos projéteis de baixa velocidade, o estiramento dos tecidos acontece em velocidade inferior à necessária para ocasionar o rompimento dos tecidos. Com isso, o ferimento resultante terá tamanho próximo ao do projétil, considerando não só o seu diâmetro como o seu comprimento, uma vez que pode ocorrer a perda de estabilidade com consequente tombamento do projétil.
Mesmo no caso dos projéteis expansivos, ainda assim não haverá alteração da velocidade de formação da cavidade temporária, ou seja, o tamanho da lesão resultante será pouca coisa maior que aquela resultante de projéteis ogivais. Essa diferença de tamanho pode até não ser perceptível, a depender do tecido lesionado. O tombamento do projétil não representa grande alteração, uma vez que, como já discutido anteriormente, os projéteis são mais “quadrados” de maneira que não há muita diferença entre o seu diâmetro e comprimento (Figura 3).
Quando um projétil de baixa velocidade atinge um osso, a fragmentação dependerá principalmente da massa do projétil. Projéteis mais leves, tais como nos calibres 7.65mm Browning ou mesmo .380 Auto, raramente conseguem produzir a fragmentação de grandes ossos, como o fêmur ou úmero. Já projéteis mais pesados conseguem produzir a fragmentação do osso, entretanto os fragmentos gerados serão grandes e lançados a pequenas distâncias justamente por causa do seu tamanho.
A fragmentação dos projéteis não é um elemento desejável nos calibres de baixa velocidade. Como os danos por eles produzidos são apenas os primários, o desejável é que possuam maior penetração. Para isso, precisam manter a massa e, consequentemente, a inércia.
4- FERIMENTOS DE TIRO PRODUZIDOS POR PROJÉTEIS DE ALTA VELOCIDADE
Como vimos anteriormente, não há muita diferença entre o diâmetro e o comprimento de projéteis de calibres de baixa velocidade. Já nos projéteis de calibres de alta velocidade, a diferença entre o diâmetro e comprimento do projétil é considerável, chegando a mais de três vezes em alguns casos. Na parte anterior deste artigo, vimos que isso acontece para que haja redução do CA (coeficiente de arrasto) e aumento do CB (coeficiente balístico), tornando o projétil mais eficiente para atravessar o ar.
Quando um projétil com o formato mostrado na Figura 4 atinge um meio mole como o corpo humano, a estabilidade fica prejudicada, em virtude do maior arrasto produzido pelos tecidos. O projétil até consegue percorrer um determinado trecho ainda com estabilidade, mas depois tomba, oferecendo a sua área lateral perpendicularmente ao deslocamento. Vimos na Parte II desse estudo que o formato do corpo possui grande interferência no arrasto. Neste caso do tombamento do projétil, o arrasto que era pequeno antes do tombamento, passa a ser enorme quando o projétil tomba, empurrando uma grande massa de tecidos a grande velocidade, resultando em uma cavidade temporária enorme e com velocidade de formação muito maior do que dos calibres de baixa velocidade, justamente por causa da maior velocidade do projétil. Essa distância necessária dentro do corpo para que ocorra o tombamento do projétil e magnificação do dano é denominada “neck” (do inglês, pescoço). Veja este efeito na Figura 5:
Essa formação do neck está aliada a diversos fatores, que fazem com que ele seja maior ou menor, tais como a velocidade do projétil, formato do projétil, o passo de raiamento da arma e a consistência da região anatômica.
Projéteis mais velozes resultam em neck mais longo. Projéteis mais compridos possuem menos estabilidade, portanto neck mais curto. Considerando o mesmo tipo de projétil, armas com passo de raiamento menor impõem rotação mais rápida ao projétil, aumentando a sua estabilidade e, consequentemente o neck. Regiões anatômicas mais moles conseguem desestabilizar o projétil mais rápido, resultando em um neck menor. Os danos resultantes do estiramento dos tecidos em virtude da cavidade temporária são denominados “danos secundários”.
A imagem mostrada na figura seguinte ilustra o diagrama mostrado na Figura 5:
A região de formação do neck interfere sobremaneira na gravidade da lesão. Indivíduos mais magros podem sofrer menos lesões do que indivíduos mais corpulentos, caso o neck seja muito longo, uma vez que pode ocorrer a transfixação do corpo antes do tombamento do projétil. Por outro lado, se o neck for muito curto, a maximização da lesão pode acontecer antes de atingir a profundidade onde se encontram os vasos sanguíneos mais calibrosos, principalmente no caso de tiros que incidem lateralmente no corpo.
Esta formação do neck é um fator de grande importância nos calibres de alta velocidade, entretanto não é o único a produzir danos. Quando um projétil de alta velocidade atinge um osso, a grande fragmentação tanto do osso quanto do projétil aliada à velocidade que tais fragmentos serão impulsionados aumenta consideravelmente a gravidade da lesão, resultando nos “danos terciários”. Quando um ou mais ossos dos membros são atingidos, a laceração tecidual pode ser tão ampla a ponto de praticamente resultar em uma amputação traumática do membro, que ficará preso ao corpo tão somente por retalhos de pele e músculos, como mostrado na figura seguinte:
Outra característica comum dos projéteis de alta velocidade é a fragmentação do projétil, que ocorre de maneira diferente para projéteis encamisados ou softpoint/polymertip. Nos projéteis encamisados, percebe-se o tombamento mostrado na Figura 5, com uma grande pressão exercida na lateral do projétil pela resistência dos tecidos. Como o comprimento do projétil é muito maior que o diâmetro, ocorre a fragmentação do projétil, geralmente em dois fragmentos, ainda com velocidade suficiente para penetrar mais nos tecidos. A cinta de crimpagem dos projéteis, que é um anel recartilhado no ponto de estreitamento que coincide com a boca do estojo, maximiza a possibilidade de fragmentação do projétil.
Nos projéteis softpoint/polymertip, O próprio formato do projétil favorece a sua expansão e fragmentação antes mesmo que ocorra o tombamento. A Figura 9 mostra a ação de um projétil expansivo de alta velocidade em uma barra de sabão.
Quando a entrada de um projétil de alta velocidade se dá em uma região que tenha um osso plano próximo da superfície, como é o caso da cabeça ou da região do esterno, a fragmentação óssea ocorre também projetando fragmentos no sentido contrário à entrada do projétil. Este efeito ocorre devido à alta velocidade do projétil, de forma que antes mesmo de atravessar o osso já produz a fragmentação. Os fragmentos são lançados no sentido contrário da mesma forma que a água é lançada no sentido contrário de uma pedra lançada em um lago. Esses fragmentos ósseos lançados ao contrário resultam em um grande ferimento de entrada, como é visto na Figura 10, a seguir:
5 – CONCLUSÕES
Espera-se que com a leitura das três partes desse estudo tenha ficado claro que o que determina as características da lesão não é propriamente a energia do projétil e sim a sua velocidade. Foram mostradas as diferenças entre as lesões de calibres de alta e baixa velocidade e os efeitos internos no corpo, podendo-se resumir da seguinte maneira:
Projéteis de baixa velocidade:
- São aqueles com velocidade inferior a 2000 fps (610 m/s);
- Produzem apenas danos primários, que são aqueles decorrentes da ação mecânica direta do projétil;
- Os danos secundários e terciários, que são respectivamente os produzidos pela cavidade temporária e pela fragmentação do projétil e ossos, não resultam em lesões significativas;
- O tombamento do projétil não é um fator de grande relevância na característica da lesão;
- Produzem pequena ou nenhuma laceração tecidual.
Projéteis de alta velocidade:
- São aqueles com velocidade superior a 2000 fps (610 m/s);
- Produzem danos primários, secundários e terciários;
- O tombamento do projétil é um fator importante no resultado da lesão;
- A distância necessária para o tombamento do projétil é denominada “neck”;
- Produzem lesões com laceração tecidual significativamente maior do que os projéteis de baixa velocidade.
As considerações acima, embora importantes, servem para nortear os conceitos relacionados à lesão e não devem ser levados como números mágicos ou absolutos. Como já exaustivamente foi comentado, os fatores que resultam nas lesões são múltiplos e devem ser analisados caso a caso, ou seja, pode acontecer de um projétil com velocidade um pouco inferior a 2000 fps se comportar como projétil de alta velocidade ou um projétil com velocidade um pouco superior se comportar como um projétil de baixa velocidade. O importante é entender os conceitos relacionados às lesões e seus mecanismos de produção. Outro ponto importante é entender que a energia não é um bom parâmetro para comparação de calibres, uma vez que a mesma energia pode trazer resultados diferentes e inconsistentes. Em breve pretendo retomar o assunto com um viés mais prático, realizando experimentos para demonstrar as diferenças nas características das lesões para projéteis de baixa e alta velocidade.