VIESES COGNITIVOS E O CONFRONTO ARMADO
Muita gente comenta que o cérebro humano é como um supercomputador, com uma capacidade de processamento de informações que as máquinas ainda vão demorar muito para conseguir igualar. A parte que ninguém fala é que o cérebro consegue esse rendimento tão grande na base de muita trapaça! Isso mesmo. Nossa mente vive procurando formas de economizar energia, criando atalhos eficientes para o reconhecimento de padrões, aumentando assim a velocidade para tomada de decisões e chances de sobrevivência em um mundo dinâmico.
O problema é que isso tem um custo, relacionado com a chance de erro nesses atalhos da mente. Se o erro for na hora de sair de casa e você pegar a carteira de outra pessoa pelo simples fato dela estar no mesmo lugar onde deveria estar a sua, tudo bem. No máximo você irá passar o aborrecimento de voltar em casa. Agora se esse erro for ao efetuar um disparo contra um indivíduo que você pensava estar sacando uma arma, mas que tão somente tirava uma carteira do bolso, aí a coisa fica bem diferente.
“Tirar conclusões precipitadas é eficaz se houver grande probabilidade de que as conclusões estejam corretas e se o custo de um ocasional erro for aceitável.”
Daniel Kahneman
Apesar de existirem discussões muito antigas que nos levam até a idéia de que nossa mente pode nos enganar, a expressão ˜Viés Cognitivo” surgiu academicamente junto com a chamada “Economia comportamental”, área de estudo da economia que se entrelaçou com os anseios dos psicólogos que estudavam o julgamento e tomada de decisão. Os expoentes dessa nova área foram Amos Tversky e Daniel Kahneman, que introduziram a expressão na década de 80, definindo “viés cognitivo” como uma tendência sistemática ao erro na interpretação de uma informação.
Viés em inglês se chama “bias” e esse é um termo muito presente nas literaturas sobre treinamento policial, uma vez que a tomada de decisão é extremamente impactante na atividade de segurança pública e essas decisões quase sempre são em ambiente estressante e com enorme compressão de tempo. Um detalhe muito importante sobre os vieses é que eles ocorrem de maneira subconsciente, ou seja, isso significa que uma série de fatores influenciam nossa tomada de decisão sem que a gente se dê conta disso.
Depois que o assunto começou a ser amplamente estudado, mais de uma centena deles já foi catalogado em estudos pelo mundo, com alguns deles causando certo alvoroço por exemplo no meio jurídico, quando uma série de estudos mostrou que o fator que mais importava para definir a pena de alguém em um julgamento nos Estados Unidos era se o magistrado já tinha almoçado ou não. A fome provocava o endurecimento das penas aplicadas. Entender esse assunto é muito importante para que possamos discutir e separar, por exemplo, o que é uma ação policial discriminatória e o que é uma decisão tomada sob efeito de um viés cognitivo. Importante também para entender qual nível de precisão de tomada de decisão podemos exigir dos profissionais de segurança pública e das pessoas em geral, bem como adotar protocolos para evitar ou minimizar os erros ocasionados pelos vieses.
Confundir uma furadeira com uma metralhadora talvez pareça um erro absurdo quando você está visitando uma obra em andamento na sua casa, mas quando você está no meio de uma progressão em ambiente hostil, com baixa luminosidade, sob estresse e com a expectativa de que pode ser baleado a qualquer momento, sua mente é capaz de fazer você ver e ouvir a metralhadora. Separei alguns dos principais vieses cognitivos que se relacionam diretamente com questões que podem ser a diferença entre vencer um confronto armado ou provocar uma tragédia.
VIÉS DE CONFIRMAÇÃO
Talvez esse seja o viés cognitivo que mais causa prejuízo na atualidade. É um fato amplamente verificado na psicologia social de que temos a tendência em analisar qualquer informação de forma que ela concorde com a nossa opinião já existente, nossas crenças ou expectativas. Não é à toa que grupos políticos rivais assistem o mesmo debate a tiram conclusões opostas das mesmas falas e argumentos. Em virtude disso procuramos apenas estudos científicos que corroboram nossa opinião sobre certo tema e analisamos o que está na nossa frente de maneira seletiva.
“Esse filtro muito comum tem vários nomes diferentes: viés cognitivo, viés de confirmação, viés de engano, visão desejosa e visão em túnel. Ele nos põe em risco de reunir informação de maneira seletiva, buscando inconscientemente dados que sustentem as nossas expectativas e ignorando aqueles que não as sustentam. É uma armadilha comum em muitos campos. Pode-se constatá-la quando policiais fazem perfis raciais, quando jornalistas entrevistam apenas especialistas que apoiam sua opinião inicial sobre um determinado tópico, quando acadêmicos constroem estudos de caso para sustentar suas hipóteses e quando agentes responsáveis pela avaliação de empregados se concentram somente em fatos de desempenho que correspondam à sua opinião preexistente de um funcionário.”
(Inteligência Visual, 2016, p. 72)
Na atividade policial ou tomada de decisão de um possível confronto armado isso é potencialmente perigoso, em virtude do elevado custo do erro de interpretação. Esse custo é medido em vidas. Muitas vezes os “sinais” que interpretamos como ameaçadores podem ser baseados em expectativas que já tínhamos anteriormente e nosso processo de verificação pode estar sendo guiado pelo que Amy Herman chama de “visão desejosa” em seu livro “Inteligência Visual”. Peter Wason foi o psicólogo cognitivo que criou a expressão na década de 60, mas esse fenômeno é observado desde a Grécia antiga até os dias atuais, nas discussões sobre vacina do corona vírus.
Nas tentativas de explicar o motivo desse fenômeno, cada área do conhecimento puxa a sardinha para o seu lado, com argumentos evolucionistas, genéticos, ou da influência cultural no comportamento. No fim das contas o fato é que a gente sempre gosta de estar certo e odeia estar errado, então tudo que representa esse esforço de precisar aprender algo, mudar de opinião ou de mentalidade será visto com muita desconfiança, insegurança e críticas.
Tendemos a perceber aquilo que esperamos perceber
rICHARDS J. HEUER
VIÉS DE ANCORAGEM
Na lista dos vieses cognitivos, a Ancoragem talvez seja o efeito mais presente na realidade da atividade policial, e com potenciais muito nocivos para todos os envolvidos. De maneira resumida, a Ancoragem é a influência que uma informação ou percepção inicial provoca na maneira que iremos interpretar informações posteriores. Quando alguém fala que determinada rua é perigosa, tudo que você passar a ver nessa rua irá parecer mais suspeito, pois você está ancorado na premissa anunciada e toma ela como base para analisar as informações posteriores.
Em geral, a ancoragem é importante para sobrevivência por acelerar o processo de tomada de decisão e mudar níveis de alerta, mas como ocorre de maneira subconsciente também representa um risco se levarmos em consideração que a informação ancorada pode estar errada. Exemplo clássico são as ocorrências passadas no sistema de rádio da polícia, onde é fácil alguém confundir um nome, número de placa, bem como também algum criminoso pode ligar e passar intencionalmente informações erradas para prejudicar outra pessoa. Um carro prata na verdade pode ser preto, uma ocorrência passada como simples pode ser altamente complexa e arriscada, ou o contrário.
Se você acha que isso não tem muita interferência na rotina de quem possui uma arma de fogo em casa, experimente digitar no buscador “pensou que era um ladrão e matou o filho”. Você irá ler rapidamente várias histórias que misturam justamente um ambiente de incerteza onde acaba prevalecendo o viés de confirmação e de ancoragem, resultando em tragédias familiares. Para não virar refém desse viés cognitivo, exercite a desconfiança , considerando de forma antecipada que certas informações podem não ser reais e valorizando sua capacidade perceptiva independentemente do histórico apresentado. simular as possibilidades de erro é uma ótima estratégia para diminuir as chances de ser dominado por um desvio sistemático na interpretação de informações.
VIÉS DE DISPONIBILIDADE
Esse efeito atinge toda a população na interpretação dos dados de segurança pública, bem como atinge os policiais na tomada de decisão em uma ocorrência. Quem nunca foi assaltado geralmente acha exagero certos comportamentos preventivos, típicos de quem já foi ou de quem mora em locais conhecidos pela existência recorrente de crimes. Nossa tomada de decisão é baseada nos dados disponíveis naquele momento, o que pode nos levar a grandes erros de interpretação, pois o que está disponível no momento pode não representar exatamente a realidade geral.
Ter sido assaltado aumenta bastante a disponibilidade da informação sobre o risco em nossa mente, bem como assistir a notícia de um acidente aéreo logo antes de embarcar em um voo não deve despertar bons pensamentos. Por mais que nossa racionalidade possa concluir que a ocorrência de um acidente aéreo não altera o fato de que andar de avião é muito seguro, a notícia recente do desastre causa forte influência cognitiva na interpretação do risco de voar naquele momento.
Dessa mesma linha de raciocínio decorre o famoso conceito de “Sensação de segurança”, tão falado pelos gestores da segurança pública. Eles precisam definir estratégias que não somente diminuam a incidência de crimes (segurança real), mas que também convençam a população disso e façam cada um sentir-se seguro. Por mais irônico que pareça, muitas das estratégias que resultam em maior “sensação de segurança” acabam prejudicando as ações de segurança real. Elas giram quase sempre em torno do viés de disponibilidade, colocando viaturas policiais onde possam ser vistas por todos e passando a impressão de que a presença policial é geral, porém diminuindo o número de viaturas que estão efetivamente atendendo as ocorrências.
Para os policiais o efeito atua bastante modulando as expectativas sobre quais comportamentos são de fato suspeitos e impedindo muitas vezes de notar padrões novos de atuação criminal. Algumas vezes já experimentei a sensação de pegar uma arma de fogo ilegal logo na primeira hora de serviço e isso muda demais a forma de ver as coisas em seguida. Você tem a sensação de que na próxima hora vai tropeçar em outra arma novamente. Você esquece completamente que pegar uma arma de fogo não é assim algo tão recorrente para acontecer de hora em hora (apesar de ser possível, vez ou outra).
Quando o policial se depara, por exemplo, com uma ocorrência de roubo envolvendo um suspeito em cadeira de rodas, é provável que por algum tempo esse policial tenha outro olhar para pessoas que estejam em cadeira de rodas, pois o evento recente tornou maior a disponibilidade da suspeita em sua mente.
EFEITO HALO
Em 1920, o psicólogo Behaviorista Thorndike escreveu sobre o efeito Halo, que seria a interferência que uma característica exerce na avaliação de outras questões que não necessariamente possuem relação de causa/efeito com o que foi visto anteriormente. Goffman já tinha escrito algo semelhante ao falar sobre o poder do estigma, que nos leva a atribuir características morais específicas para pessoas com certas características físicas. Pessoas comunicativas tendem a ser interpretadas como mais confiáveis, pessoas bonitas fisicamente são consideradas como pessoas boas e mais habilidosas.
Deficientes físicos, não raramente são tratados como de capacidade inferior em questões que não se relacionam com a limitação física em si. Inclusive é mais difícil perceber um deficiente físico como ameaça. Não é de admirar que quadrilhas usem desse artifício no planejamento de roubos, como o que ocorreu na joalheria de um shopping do interior de são paulo dia 15/01/2021, onde um dos marginais entrou na loja empurrando o comparsa em uma cadeira de rodas.
Qual a relação disso com o confronto armado?
É necessário entender que enquanto nos esforçamos para perceber a intenção violenta, o criminoso também se esforça todos os dias para enganar nossa percepção e conseguir o que quer com o mínimo de esforço e o máximo de segurança para ele. Faz sentido que o marginal perceba que certas características de vestuário e comportamento afastam a fundada suspeita de policiais e possíveis vítimas, logo, ele buscará adotar esses padrões para passar despercebido. Tem se tornado cada vez mais comum criminosos realizarem assalto vestidos de motoboy, entregador de delivery, ou qualquer outro disfarce que reduza suas chances de ser abordado por uma guarnição de serviço, ou denunciado por um cidadão.
O indivíduo atento a essas dinâmicas criminosas pode basear sua fundada suspeita em padrões mais complexos de comportamento, considerando a influência do efeito Halo na sua percepção. Evidentemente, isso demanda maior consciência situacional e observação ativa. Isso também é muito importante para quem não é Policial e possivelmente já criticou alguma intervenção pelo fato de estarem justamente quebrando esse viés cognitivo (do efeito halo), ao abordar motoboys, entregadores, carros de luxo, homens de terno e Bíblia embaixo do braço, mulheres com carrinho de bebê, fugindo de padrões estereotipados de conduta.
“BIAS CODEX”
O número de vieses cognitivos catalogados e citados em trabalhos científicos ficou tão grande que um designer compilou todos os conhecidos até então em um infográfico que os organizou em quatro grandes grupos, indicando inclusive o motivo para o cérebro trapacear, de certa forma. Os grandes grupos são:
- Muita informação
- Pouco significado
- Necessidade de agir rápido
- O que devemos lembrar?
Analisando sob um aspecto evolucionista, fica fácil entender o motivo dos vieses cognitivos permanecerem no código genético da espécie humana, pois eles tornam a tomada de decisão mais rápida, complementam lacunas de percepção, ajudam a lidar de maneira mais simples com ambientes extremamente complexos e proporcionam respostas mais rápidas de preservação. Mesmo com o custo dos erros, em perspectiva geral proporciona maiores chances de sobrevivência e perpetuação da espécie.

QUAL A RELAÇÃO DISSO TUDO COM O TREINAMENTO?
O ambiente de atuação com armas de fogo é sempre recheado de estresse, compressão do tempo, risco de morte e com alto custo para os erros. O treinamento eficiente precisa contemplar a existência dos vieses cognitivos e sua importância no cenário do confronto armado. Incluir no protocolo de combate medidas que impeçam ou diminuam a chance de erros, como a verificação positiva de alvos, ajudam a evitar tragédias. Além disso, estimular alguns desses vieses em treinamentos de realidade simulada do tipo force-on-force ajuda a mitigar o estresse relacionado com a novidade da situação. Os estudos de caso com análise de vídeos são fundamentais e ajudam na capacidade crítica de visualizar o que pode estar errado em uma situação aparentemente inofensiva.
Nada disso exclui a possibilidade de uma decisão errada por influência de um viés cognitivo, mas pode melhorar as suas chances de adaptação e sobrevivência.