Introdução
É possível que o treinamento de armamento e tiro na formação de agentes de segurança pública em diversas instituições policiais esteja aquém do ideal. Os altos custos e os diversificados orçamentos institucionais não parecem permitir que todos os policiais sejam idealmente preparados.
Mas não será disso que tratarei aqui. Me parece que há outra área também bastante relevante para estes profissionais que pode não estar tendo a devida atenção. E, curiosamente, pode ser que esta envolva custos relativamente baixos.
Mas vamos por partes.
Algumas Estatísticas
Como de costume, começarei com algumas estatísticas.
Entre 15 e 20% das prisões podem resultar no uso da força, pela polícia, para controlar um suspeito resistente. É isso que diz estudo financiado pelo National Institute of Justice, tendo como autores Michael R. Smith e outros, citando estudos anteriores. Diz ainda que a maior parte deste uso da força envolve uso de mãos-livres. (1)
Ainda, policiais usaram táticas sem armas em 17% das vezes, tendo usado armas em apenas 2% dos casos, segundo sugerem estatísticas citadas pelo National Data Collection on Police Use of Force, atribuídas à Joel Garner e outros, em estudo de 1994 com dados de prisões do Phoenix Police Department. (2)
Dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro indicam que em 2019 foram realizadas 54.680 prisões naquele Estado. Por sua vez, naquele ano ocorreram 1.814 homicídios por intervenção policial. Este número é cerca de 30 vezes menor que o número de prisões. Parece razoável supor que em quantidade significativa de prisões houve algum uso da força que não a letal. (3)
As estatísticas parecem indicar que, na atividade policial de realização de prisões, o uso efetivo de armas de fogo é incomum, ainda mais se comparado com o uso de outras formas de força para contenção. Ainda que de forma grosseira, parece que há um indicativo de que é muito importante, para a atividade policial, o treinamento e uso efetivo de técnicas de contenção alternativas à letal.
Note que isso não significa, de forma alguma, que o uso de armas de fogo ou outros meios letais não seja importante. Muito pelo contrário. São ferramentas essenciais à atividade e sobrevivência policial. Apenas quer-se ressaltar que outras técnicas são também importantes, têm aplicações rotineiras, e merecem necessária atenção na formação policial.
Treinamento Policial
Considerando a importância de técnicas de contenção e armas não-letais, como as instituições de segurança pública têm tratado o tema em suas academias e cursos de formação?
É evidente que cada instituição policial tem suas metodologias e grades curriculares, sendo difícil analisar todas as vigentes pelo país. Alguns exemplos, porém, devem bastar para uma noção geral, ainda que imprecisa. Para tanto vejamos, a título ilustrativo, a Malha Curricular Para Ações Formativas da Polícia Civil e Polícia Militar (Núcleo Comum), desenvolvida pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, em 2014. (4)
Na Área Temática VIII, Funções, Técnicas e Procedimentos em Segurança Pública, as disciplinas se distribuem da forma que segue, considerando um total de 908h da Malha Curricular:
Disciplina | Carga Horária | Representação na Área | Representação na Grade |
Abordagem | 60h | 21,28% | 6,61% |
Preservação e Valorização da Prova | 12h | 4,26% | 1,32% |
Atendimento Pré-Hospitalar | 24h | 8,51% | 2,64% |
Uso Diferenciado da Força | 20h | 7,09% | 2,20% |
Defesa Pessoal Policial | 40h | 14,18% | 4,41% |
Armamento, Munição e Tiro | 110h | 39,01% | 12,11% |
Técnicas de Imobilizações Policiais e Utilização de Algemas | 16h | 5,67% | 1,76% |
Total | 282h | 100% | 31,06% |
Esta malha curricular é “um referencial teórico-metodológico”, não estando necessariamente consolidada em alguma instituição específica. Ainda, necessário reconhecer que definir uma grade ideal e comum à diversificadas instituições públicas é complexo e um exercício de adequação de recursos, tempo e outras variáveis.
Porém, parece relevante observar que nela o conjunto que trabalha Técnicas e Procedimentos em Segurança Pública não perfaz sequer um terço do total de carga horária. São 282 horas (das 908 horas totais) distribuídas em habilidades diversas.
Também, ainda que não se desconsidere as diversificadas curvas de aprendizado dos assuntos, as disciplinas que parecem agrupar capacidades de contenção não-letal somam 76 horas, cerca de 8,37% da carga horária total (consideradas Uso Diferenciado da Força, Defesa Pessoal Policial e Técnicas de Imobilizações Policiais e Utilização de Algemas).
O estudo Análise Comparada da Grade Curricular do Curso de Formação da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo, de 2013, Paulo Jábali Junior, fez um levantamento das grades curriculares de alguns cursos de formação para policiais, entre eles os dos Cursos de Formação das Polícias Militares de Santa Catarina, Rio de Janeiro e do Paraná.
Análise das grades de formação das polícias apresentadas neste estudo parecem apontar dificuldades semelhantes. No curso de formação da Polícia Militar de Santa Catarina, por exemplo, citado no estudo, a disciplina Técnicas e Procedimentos em Segurança Pública ocupa 30% da carga horária total. Ainda, na grade da Polícia Militar do Rio de Janeiro as disciplinas Instruções Práticas de Ações Táticas e Método de Defesa Policial Militar, somadas, perfazem 10% da grade (esta última apenas 3%).
Assim, ainda que por motivos certamente justificáveis, pode haver um indicativo de que as forças de segurança pública não estão despendendo tempo proporcional às necessidades para o aprimoramento de técnicas de contenção não-letais na formação policial.
Algumas Alternativas
A doutrina de Uso Seletivo da Força e seus conceitos correlatos já têm cerca de 30 anos de existência. Merecem, certamente, uma publicação à parte, dadas sua extensão, complexidade e particularidades. Não a tratarei aqui.
Limito-me a citar, de forma exemplificativa, algumas alternativas e caminhos ao uso da força letal na contenção de pessoas para efetivação de prisão resistida:
Bastões retráteis: bastões normalmente de aço ou polímero, telescópicos, utilizados para contra-golpear ou auxiliar em chaves capazes de diminuir a resistência do agressor. São úteis, fáceis de portar ostensivamente e de custo relativamente baixo.
Sprays de pimenta: normalmente portáteis, dispersam gás pimenta no agressor diminuindo sua capacidade de resistência. São úteis, fáceis de portar de forma discreta e de custo relativamente baixo.
Dispositivos eletrônicos de controle: normalmente através do disparo de dardos, são capazes de emitir descargas elétricas de alta tensão e baixa corrente capazes de incapacitar o agressor. Costumam ser eficientes, embora nem sempre disponíveis em quantidade suficiente.
Técnicas de domínio e submissão de pessoas: Conjunto de técnicas de mãos livres capazes de conter o agressor. Embora guardem semelhanças com técnicas de defesa pessoal, possuem aplicações diferenciadas, dado o trabalho normalmente em equipe, com sincronização de ações, propósito de contenção (e não agressão), possibilidade de controle da iniciativa e posicionamento da equipe, dentre outros. Tem como vantagens o custo, mas exigem treinamento em equipe e constante.
Técnicas operacionais e comandos de voz: embora não sejam necessariamente técnicas não-letais para contenção de pessoas, penso haver uma forte ligação na escalada da situação. O efeito psicológico causado pelo uso adequado, pela equipe policial, das técnicas operacionais – posicionamento da equipe, postura, distanciamento, etc. – pode inibir a escalada da situação para uma circunstância de agressão ou descontrole. O mesmo pode ocorrer com o uso correto das técnicas de verbalização – clareza, unidade, entonação, postura, etc.
Obs: Não foram consideradas as balas de borracha e granadas dispersantes de gás por terem utilização mais adequada – ainda que talvez não exclusiva – no controle de distúrbios civis.
Conclusão
Pode parecer controverso que, em um local que costuma-se falar de armas de fogo, esteja sugerindo treinamentos em técnicas diversas. Mas me parece urgente e necessário.
Não se quer aqui criticar as academias de polícia nacionais. Muito pelo contrário. As citações são meramente ilustrativas e podem até ser injustas, já que estas instituições podem ter alternativas eficazes para a soluções do problema. Além disso, estou certo que todas fazem muito com os poucos recursos que dispõem.
O objetivo é tão somente alertar para uma lacuna que parece fundamental para o bom exercício da atividade e sobrevivência policial: o treinamento de técnicas de contenção não-letais. E, mais, que policiais atentem para o fato de que muitas vezes não basta o treinamento adquirido na formação inicial de suas carreiras, mas sim um aprendizado e treinamento continuado, ao longo dos anos.
Treine sempre. Sua vida, a de seus colegas e a de terceiros podem depender disso. Lembre-se.
Fontes:
(1) A Multi-Method Evaluation of Police Use of Force Outcomes: Final Report to the National Institute of Justice <https://www.ncjrs.gov/pdffiles1/nij/grants/231176.pdf>
(2) National Data Collection on Police Use of Force <https://www.bjs.gov/content/pub/pdf/ndcopuof.pdf>
(3) Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro <https://www.ispdados.rj.gov.br:4432/estatistica.html>. Para prisóes foram somados os campos Autos de Prisão em Flagrante (apf) e Cumprimento de Mandados de Prisão (cmp).
(4) Matriz Curricular Nacional para Ações Formativas dos Profissionais de Área de Segurança Pública <https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/seguranca-publica/livros/matriz-curricular-nacional_versao-final_2014.pdf>, pág. 75.
(5) Análise Comparada da Grade Curricular do Curso de Formação da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo, Paulo Jábali Junior <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/11224/An%E1lise%20Comparada%20da%20Grade%20Curricular%20do%20Curso%20de%20Forma%E7%E3o%20da%20GCMSP.pdf;jsessionid=16D1830D66EF30241262809F9A13E4A1?sequence=1>